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terça-feira, 18 de outubro de 2011

QUE LÍNGUA É ESSA?


José Geraldo C. Trindade

No conto “O espelho”, Guimarães Rosa usa a expressão salto mortale no lugar da palavra morte, e justifica: “por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões amortecidas”. Quer dizer, por que não usarmos, de vez em quando, palavras ou expressões que deem nova cor ao texto, ao invés de usarmos outras de uso comum e já batidas pelo tempo de uso? Até aí, tudo bem. A língua é rica e podemos construir metáforas, metonímias e mais o que for necessário para dar mais beleza ao discurso.
O que dizer, porém, de expressões que invadem a língua com a desfaçatez de quem entra sem ser convidado? É o caso, a meu ver, da expressão ir a óbito que, de repente, saiu do campo técnico e passou a fazer parte do falar cotidiano. De algum tempo para cá, as pessoas não morrem, elas vão a óbito. Antes, íamos ao Rio de Janeiro, à Bahia ou a Pirinópolis. Os mais bem aquinhoados iam a Paris, Roma ou Londres. Ou, dependendo das circunstâncias, iam catar coquinhos, pentear macacos ou para os quintos do inferno e ainda mais longe como este lugar no qual o caro leitor está pensando. Mas, de repente, aparece este novo toque e timbre para uma palavra que ainda é tabu para muita gente, agregando movimento ao encontro com a indesejada das gentes, como escreveu Manoel Bandeira.
Bom, mas, seja lá como for, a língua se renova, o falar de todo dia dá à luz dezenas, talvez centenas de novos sentidos a termos que já moram há anos nos dicionários.
O que dizer, porém, daqueles que, ao invés de enriquecerem a última flor do Lácio com novas expressões, torturam-na com requintes de crueldade, cometendo crimes hediondos contra o idioma pátrio? Coisas como enchentivou – que será isso? Um incentivo às enchentes? Ou, então, acusar alguém de grave enrresponsabilidade, que deve ser uma irresponsabilidade muito grande, ou ainda, escrever enverde... Que é isso? Não sei, mas pode ser uma espécie de arco-íris linguístico. Vejam só: enverde amarelo pintou a parede de azul. Isso sim é grave. É a língua indo a óbito por obra e graça do falante enrresponsável.
Escrever é uma arte difícil, todos sabem disso. Se assim não fosse, as ruas estariam cheias de Camões, Machados, Drumonds e outros tantos. Mas não é preciso apelar! Na hora da dúvida, fiquemos no terra a terra, no seguro e discreto feijão com arroz que, embora sem o charme de um steak au poivre, alimenta do mesmo jeito.
O cuidado com o idioma pátrio deveria ser preocupação de todos os falantes. Afinal, é sobre ele que é construída toda nossa cultura. E, mesmo entre os que atropelam o português – a língua, não o nativo de Portugal – há os que demonstram, de alguma forma, preocupação. Exemplo? Alguém, que não tive o desprazer de conhecer, expressou-se desta forma “Que pena que são palavras conhecidas e ultilizadas pela elite da população gramatical, pois seriá ético se várias pessoas tivessem a capacidade de dar vida e não a morte à essas palavras que esperam no tempo passado uma mudança no presente para nascerem no futuro. Como, meu caro? Você não entendeu? Sorte sua, nem eu. Não consigo imaginar aquelas muitas palavras, sentadinhas, quietas, esperando a hora de nascerem no futuro. Poderíamos chamar tal fenômeno de gestação linguística? Talvez.
Tão ou mais grave que os erros gramaticais é a incapacidade de utilizar as palavras adequadamente. Alguém, escrevendo sobre um acidente, informou que, “acionado o resgate, os helicópteros subiam a montanha na tentativa de encontrá-lo.” Como é que é cidadão? Quer dizer que os helicópteros, cansados de voar, resolveram subir a montanha a pé? Imaginemos aquela fila de helicópteros, suados, tensos, arrastando-se montanha acima para salvar um coitado que se meteu onde não devia.
Com certeza – ou concerteza, como querem alguns inovadores – a dificuldade maior está em dar coerência ao texto. Parece que há, aqui, um problema de difícil solução, representado pela distância entre o cérebro que pensa e a mão que escreve. Ao longo do braço, pelo visto, perde-se a coerência e o resultado é outra informação tenebrosa do tipo “alega imparcialidade, até se entende que não dá para ressaltar 50% dos lados, mas é implícito no explícito ou é contrário que desrespeita o leitor o ovinte etc. Como minha senhora? Está confuso? Ora, então, fica o dito pelo não dito, ou o explícito pelo implícito ou o contrário, ou vice versa, ou seja lá o que for, que seguramente não deve ser. Entendeu?
E o que dizer sobre os efeitos do álcool nos neurônios do escrevinhador? Um artista, seguramente após beber todas, escreveu que “as propagandas elaboradas para a publicidade desse produto são sempre com o mesmo dilema de que a cerveja antártica é a boa.” Que produto, caro amigo? Que dilema? Seu para escrever, meu para entender ou da Antarctica, aliás, antártica, que não tem certeza se é ou não a boa? Neste caso, perguntem à Juliana Paes.
Muito bem! Mas vamos tratar de coisa séria. Como se resolve a dificuldade que muitos têm de colocar no papel, com coerência, o que lhes passa pela cabeça? Um quase estudioso do assunto levantou a hipótese segundo a qual “os pensamentos divergêntes acarretam em ganho de conhecimento às partes envolvidas em função de complementação informacional.” Ops! Não ficou muito claro. Melhor seria que o sujeito em questão tivesse escrito que uma das possíveis soluções para tão perturbador problema é a leitura. Fora dos livros não há salvação, diz um amigo meu, leitor contumaz. É fora de dúvidas que ele tem razão. Falta leitura para muitos dos nossos patrícios. Leiam, todos! Livros, revistas, jornais, panfletos, receitas de bolo, bula de remédios, leiam, por favor, para que os espíritos dos mestres da língua possam descansar em paz.

Em tempo: aquele "enverde" que aparece alguns parágrafos atrás nada tem a ver com a cor verde. A intenção do desavisado escrevinhador era escrever “ao invés de”, mas saiu aquela barbaridade. E agora, José?

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