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sábado, 25 de agosto de 2018


E CHEGA O DIA de arrumar a bagunça. Pode ser uma gaveta ou toda a casa. É nesta hora que nos defrontamos com uma situação complexa: o que guardar e o que jogar fora. Ao longo do tempo, vamos acumulando um monte de coisas sob o pretexto de que um dia podem ser úteis. Mas, não poucas vezes, sabemos que este dia não chegará e que aquilo tudo entulhando gavetas ou armários não passa de quinquilharia sem serventia. Contas pagas há anos, papéis nos quais rabiscamos alguma coisa que nem sabemos mais o que significa, livros que não mais vamos ler, até porque já passamos da quarta ou quinta releitura, fora a tralha miúda: baterias descarregadas, tocos de lápis, moedas de um centavo, etc. Então, nos perguntamos como e por que juntamos tanta coisa. Mesmo não sendo acumuladores compulsivos, por que não jogamos fora tudo que perdeu a utilidade. Eis uma pergunta que muitos não saberiam responder. Há, talvez, um apelo oculto nas coisas, ao menos naquelas às quais, sem razão lógica, nos prendemos. Quem sabe? Mas estas reflexões levam a outra bem mais inquietante: por que é mais fácil desapegar-se das pessoas do que das coisas? Sabe aquela camisa velha, desbotada, com o colarinho puído, sem botões, pendurada no guarda-roupa? Pois é, não a jogamos fora. Prometemos a nós mesmos que vamos levá-la a um alfaiate ou a uma costureira para que ela seja consertada e possamos vesti-la na primeira oportunidade. E não nos damos conta de que ela é apenas mais uma entre dez ou vinte camisas e que ela vai ficando, esperando o dia em que... Todavia, se alguém nos desagrada por alguma razão, ou por razão nenhuma, não demoramos a apagar o incômodo de nossa lista de personas gratas, e sem pensar duas vezes. Por que não nos esforçamos para entender um pouco mais as pessoas que nos cercam? Vivemos seguindo o princípio do “aos meus amigos tudo, aos inimigos o rigor da lei”. Inimigos? Eis uma palavra que traz em si graves implicações. Talvez até os tenhamos. Mas as pessoas que consideramos incômodas, em geral, são as mortalmente chatas ou as desabridamente sinceras, extremos que, muitas vezes, nos tiram do sério e, sem lhes dar o direito de defesa, simplesmente as ignoramos. Enquanto isso, nosso baú de guardados continua cheio de inutilidades que nos são caras, coisas mais importantes que muitas pessoas que nos cercam.


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Creio que já ouviram falar no autor bissexto. Aquele que, tal como os cometas, aparece com uma regularidade que pode ir de um ano, meu caso, há séculos. Mas o importante é voltar e, para quem tiver tempo, paciência e disposição, prometo comparecer a este espaço de reflexão uma vez por semana, aos sábados, um dia tão bom como qualquer outro para reflexões das mais diversas naturezas. Assim, espero ser merecedor de sua atenção e de seus comentários.


ENCONTREI, HÁ ALGUM TEMPO, uma frase de Affonso Romano de Santana que bem se aplica ao espírito humano e, em especial, aos tempos em que vivemos: “a tarefa do homem é refazer-se a partir de suas ruínas”. (In A mulher madura. Rio de Janeiro: Rocco, 1987). Nada mais claro, trágico e, ao mesmo tempo, beirando a impossibilidade. E a palavra “ruínas” parece dar um caráter sinistro ao que é dito. Afinal, nenhum de nós contempla a possibilidade de nos vermos em situação de desastre. O homem e suas ruínas, o homem e suas derrotas, o homem e seus fracassos, são condições que assustam muitos de nós. Mas a fênix renasce das cinzas, e o homem pode renascer também. O problema é que, hoje, muitos de nós valorizamos aspectos cuja falta muito nos afeta. É o velhíssimo e batido lugar comum: valorizamos o ter e não o ser. Eis a raiz do problema. É o ter, ou melhor, a falta dele, o não ter, que pode levar o homem à ruína. A sociedade em que vivemos, e tomando-a em dimensão global, corre em busca da realização pessoal em níveis materialistas: o status econômico-financeiro, resultado de um bom emprego que permite adquirir casas luxuosas, carros caríssimos, viagens constantes ao exterior, etc. Obviamente que é uma atitude absolutamente hipócrita dizer que tudo isso é bobagem (lembremo-nos: quem desdenha, quer comprar). Claro que nada isso é intrinsecamente ruim, e o valor do que se tem está na maneira como o espaço que o desfrutar de tudo isso ocupa na vida do possuidor. Mas, e se a roda da fortuna inverter o sentido do giro? E se tudo acabar? Se, um dia, o que se deitou milionário acordar apenas com a roupa do corpo? É exatamente nesse momento que a visão da ruína porá a prova a capacidade de reagir aos infortúnios, de superar o choque e recomeçar, ou, apenas, desistir e deixar-se derrotar. Há muitos exemplos de ruínas desse tipo. É nessa hora que se faz necessária a força do ser, ou o que sobrou dela, para que o indivíduo reúna seus pedaços, encare a derrota, o fracasso, o insucesso, tire deles todas as lições possíveis e refaça-se a partir do que restou, e o que restou é, simplesmente, ele mesmo. Nessa hora, olhar-se no espelho e dizer “eu sou” (esquecendo o eu-não-tenho) pode ser o caminho para o homem-fênix renascer das cinzas e das ruínas.